Tese de doutorado analisa a onda de disseminação negacionista do terraplanismo

A primeira foto de um nascer da Terra feita manualmente durante a Apollo 8 a partir da Lua, em 1968 – Imagem por Reprodução/Wikimedia Commons/NASA/Bill Anders

Antes de 2015 não havia um público expressivo interessado na ideia do terraplanismo. Em fevereiro de 2015, um vídeo de um terraplanista norte-americano viralizou no YouTube, impulsionando a formação de um ecossistema digital dedicado à Terra Plana no país. Esse fenômeno foi beneficiado pelo crescimento das plataformas digitais na década de 2010, que permitiram a expansão de audiências e o surgimento de influenciadores. Embora a defesa da Terra plana remonte ao século XIX, ela se tornou mais proeminente com o advento da internet e das redes sociais.

Dentre as tendências sociais que a década de 2010 viu ascender no meio social, o negacionismo, de forma geral, é uma das que mais se intensificaram. A prevalência de emoções e crenças pessoais em detrimento de saberes cientificamente embasados é o que caracteriza o fenômeno da pós-verdade, atual momento da sociedade ocidental. Eventos como a pandemia de coronavírus e a crise climática foram e são exemplos que salientam a popularização do negacionismo no Brasil: ainda que se tenham evidências científicas de que a vacina salva vidas e de que a emissão de gases do efeito estufa provenientes de ações humanas estão acelerando o aquecimento global, há quem prefira estar do lado de teorias conspiratórias que negam essas informações.

Diretamente ligado às redes sociais, o fenômeno da pós-verdade também alimentou a expansão da crença de que a Terra é plana. Preocupada em compreender as causas e consequências em torno desse movimento social, uma tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS analisou a formação de público e as dimensões estéticas da onda de disseminação do modelo Terra Plana, que tomou forma nas plataformas digitais. A tese, de autoria de Jorge Garcia de Holanda, observou como o “despertar” para a “verdade oculta”, defendido pelos terraplanistas, se deu a partir de imersão aprofundada em conteúdos de mídia, em sua grande maioria vídeos publicados na plataforma YouTube.

Imersão aprofundada e despertar

No final de 2018, enquanto navegava despretensiosamente pelo YouTube em busca de músicas, Jorge esbarrou numa sugestão de vídeo sobre terraplanismo. O antropólogo já havia sido vagamente introduzido ao termo. Curioso, decidiu arriscar o clique para saber o que havia de tão interessante. O vídeo de horas mostrava um youtuber estadunidense documentando a situação em torno do tema, e a partir daí surgiram várias outras recomendações de pessoas defendendo a teoria. “Era um choque [pra mim]. Como assim, tem pessoas defendendo algo sobre o qual a ciência já produziu uma série de fatos em completo desacordo?”, se indagou.

Jorge Garcia de Holanda – Foto por Divulgação/Acervo pessoal

O projeto inicial da tese, que seguia a linha do mestrado e abordaria pessoas em situação de rua, foi reformulado. O interesse de Jorge em aprofundar suas buscas partiu da necessidade de compreender como era possível sustentar algo que vai tão na contramão da ciência e qual a relevância de se produzirem tantas imagens. “Toda uma coisa muito contraintuitiva para qualquer pessoa que teve uma formação em escola e estudou que a terra é esférica”, diz.

“Essas imagens são, por exemplo, do horizonte, em que você não nota uma curva acentuada. As pessoas perguntam ‘Cadê a curva?’ e apontam: ‘Ó, essa imagem foi tirada do alto de um avião e ainda não estou vendo a curvatura’. São vários tipos de imagens. Outro exemplo é um vídeo de uma estação espacial que a NASA gravou, e a pessoa identifica uma coisa que ela entende como um erro de gravação e que denuncia que aquilo foi feito em estúdio”.

A pandemia de coronavírus havia acabado de ser decretada quando ficou claro para Jorge que sua pesquisa teria de ser feita de maneira remota. Por coincidência, o terraplanismo, assim como outras teorias conspiratórias adjacentes, é um fenômeno em grande medida digital. Antes da pandemia, Jorge compareceu a convenções presenciais sobre a temática e entrevistou seus entusiastas, método que encabeçaria boa parte da tese.

Surpreendido pela imprevisibilidade, o jeito foi ir em busca de respostas se valendo de outros métodos: o autor analisou as imagens produzidas e disponibilizadas na internet, com foco especial nas centenas de vídeos assistidos. Ao relacionar o conteúdo com suas leituras sobre análise de imagem, veio a compreensão de que a imersão aprofundada nos vídeos era o principal meio pelo qual se dava o “despertar”, a revelação da “verdade” e a consequente produção de subjetividade.

Dentre os métodos utilizados pelos terraplanistas para justificar suas crenças, os mais incidentes eram: (1) vídeos de divulgação científica produzidos por uma “ciência oficial”; (2) vídeos de terraplanistas conduzindo experimentos para provar que a Terra é plana, como o chamado teste de curvatura; (3) comprovações a partir de passagens bíblicas que supostamente afirmam que a Terra é plana; e (4) imagens que supostamente atestam uma conspiração mundial, tal qual programas de TV, como o seriado animado Os Simpsons, a organização da Maçonaria, a chamada Nova Ordem Mundial e os demais atores conspiratórios.

O autor conclui que o sistema de recomendação das plataformas digitais atuais deu uma nova roupagem ao modelo da Terra Plana, cujos registros datam, pelo menos, desde o século XIX, contribuindo com a formação de públicos e atribuindo novas dimensões estéticas. “Pra gente entender o terraplanismo, é interessante compreender quais os efeitos estéticos que ele produz. Esses efeitos de realidade que dão aos vídeos que produzem tornam esses vídeos eficazes para muita gente que imergiu nesse mundo da Terra plana e passou a entender que aquilo que se apresentava naquelas imagens era o mundo real”, explica Jorge. Ainda de acordo com ele, um vídeo só não faz um terraplanista: a imersão aprofundada é essencial para que nasça um simpatizante da teoria.

Em relação ao trabalho que desenvolveu, “talvez o maior desafio tenha sido organizar o principal material da pesquisa: uma grande quantidade de vídeos (de diferentes tamanhos e estilos) e lives (muitas delas com horas de duração) que formava no YouTube um acervo que ao mesmo tempo crescia (pois continuava sendo produzido enquanto a pesquisa acontecia) e diminuía (com canais e vídeos sendo excluídos ou ocultados por seus criadores ou pelo próprio YouTube)”, detalha. 

Mapa da Terra Plana proposto pela Flat Earth Society , baseado em uma projeção – Imagem por Reprodução/Wikimedia Commons

O movimento arrefece, mas se ramifica e junta a outras conspirações

Quando o YouTube passou a regular os anúncios em torno do terraplanismo, a presença desse tema nas discussões sociais tem diminuído. Com isso, migrar para canais como o Telegram foi uma das alternativas adotadas por esses grupos. No início da pandemia, essa comunidade vivenciou uma convergência discursiva, abrangendo o negacionismo a respeito da efetividade da vacina e a credibilidade das instituições sociais. Em 2019, houve uma houve uma mudança no Youtube que dizia respeito menos a anúncios, e mais à diminuição da recomendação de vídeos terraplanistas e de temas semelhantes. “Nos canais brasileiros, ela só veio a ser realmente sentida no início de 2020, com quedas de audiência e de engajamento. Quase simultaneamente veio a pandemia, o que levou a uma migração de tema e de plataforma: muitos youtubers terraplanistas abraçaram pautas conspiratórias e negacionistas diretamente ligadas à COVID-19”, diz Holanda. “Vários deles no Telegram, e alguns chegaram a reconquistar amplas audiências no próprio YouTube quando transformaram seus canais em espaços de divulgação de conteúdo mais explicitamente convergente com o ecossistema digital mais amplo da extrema-direita do país”. 

O pesquisador observa que, num primeiro momento, o cenário foi de certa dispersão. “Mas a produção digital do terraplanismo nunca parou de fato, e muitos de seus adeptos seguem ativos em grupos e mantendo vídeos de YouTube na casa das milhares de visualizações. O terraplanismo funciona como uma “superconspiração”, que permite reunir diversos outros assuntos não diretamente relacionados aos formato do planeta, numa atitude generalizada de suspeita, em grande medida direcionada à ciência (mas não só). Para isso, o argumento básico diz algo como: “se mentiram até sobre o formato da Terra, o que mais esconderam de nós?”; em poucas palavras, é a ideia de que o “despertar” para o terraplanismo seria apenas “a ponta do iceberg””. 

Quais os efeitos do terraplanismo? O que ele ensina sobre o comportamento humano?

“Em linhas gerais, a imersão no conteúdo terraplanista, quando é eficaz, reensina o espectador a ver outras imagens e o mundo ao seu redor. Um exemplo: vídeos produzidos por agências espaciais, que por si mesmos contrariam o modelo terraplanista, passam a ser tratados como peças de ficção científica contendo pistas escondidas — pequenos detalhes visuais que, por meio de uma espécie de olhar de detetive, revelariam sua suposta falsificação”, observa o pesquisador. “Mas o terraplanismo também defende que o próprio espaço sideral é uma farsa. Isso implica em reconfigurar o olhar diante de algo tão corriqueiro como, por exemplo, o céu: se o olho humano não percebe as enormes distâncias astronômicas do sol ou da lua, isso é tomado como percepção válida de que esses corpos astronômicos seriam muito menores e estariam mais próximos da Terra. Isso tudo depende também de se considerar a própria produção terraplanista como digna de confiança, como provedora de outras evidências do modelo defendido. A forma como isso é construído vídeo a vídeo varia bastante, e é algo que busco aprofundar na minha tese”. 

Outros estudos

Desde novembro, Jorge é professor substituto de Antropologia na Universidade Federal do Ceará. “Estou com muita demanda ultimamente, muita aula para dar conta. Ainda não consegui voltar para a minha pesquisa, inclusive para desenvolver artigos a partir dela”, relata. Apesar dos compromissos atuais, o antropólogo pretende, em algum momento, desenvolver mais as ideias trabalhadas na tese, com foco nas plataformas digitais, nas dimensões estéticas e nas recomendações de algoritmo. Há a possibilidade de seguir os desdobramentos do fenômeno do terraplanismo, com atenção especial à chegada de novas plataformas no ambiente de mídia, tais como TikTok ou Kwai. “Mas me interesso também em analisar que outros fenômenos seriam marcados pelo tipo de consumo de conteúdo digital imersivo e capturante característico do terraplanismo”. 

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Edição: Notícia dos Vales 

Texto por: Alexandre Briozo Gomes Filho/Jornal da UFRGS e Notícia dos Vales

Imagem da capa: Vista completa do disco da Terra obtida em 7 de dezembro de 1972, pela tripulação da espaçonave Apollo 17 a caminho da Lua, a uma distância de cerca de 29.400 quilômetros (18.300 milhas). Mostra a África, a Antártica e a Península Arábica – Imagem por Reprodução/Wikimedia Commons/NASA